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Normeide Um Exemplo de Fé e Superação

“Diz um provérbio que o gladiador se decide na arena” (Sêneca), que é diante do adversário que se conhece a coragem do guerreiro, a sua disposição em lutar. Mas, o que fazer quando a arena é o próprio corpo e o adversário mora no próprio guerreiro? O que fazer quando você vê a própria vida querendo ser provada através dela mesma?
Normeide de Souza Farias nunca havia se feito esta pergunta, assim como a maioria de nós também não faz. Mas, a jovem de 26 anos, professora, estudante universitária, casada, está a pouco mais de um ano convivendo com a resposta. Normeide está lutando contra um câncer. Ela descobriu de forma dolorosa, literalmente dolorosa, o nome do seu adversário, uma leucemia rara*, tão rara que não há precedentes no estado da Bahia, talvez até, no Brasil.

Foi em sua casa, na cidade de Pindobaçu, que encontrei o sorriso de Normeide, que a precede. O vocabulário dela é amoroso e primaveril. Chamando-me de “flor”, ofereceu-me suco de maracujá e uma travessa de pipocas, além, claro, da sua história.

Escrítica – Como foi a descoberta da doença?
Normeide – Foi tudo muito rápido. Minha vida estava andando normalmente. Certo dia eu estava tomando banho, me ensaboando, e eu percebi uma alteraçãozinha na minha perna esquerda, na região inguinal [interior da coxa], e eu deduzi que fosse um furúnculo, algo do tipo. Meu amor [o marido] estava deitado e eu mostrei a ele: “Denival, tem um caroço na minha perna”. E ele deduziu que fosse a mesma coisa, um furúnculo. Então, tudo bem, se for, vai ficar vermelho, dolorido e a gente vai ao hospital, mas não foi assim que ocorreu.

Foram passando os dias, mais dias, e o caroço da mesma forma. Quinze dias depois, minha perna começou a ficar totalmente vermelha, minha coxa ficou vermelha e foi ficando dolorido em uma região bem maior de onde estava o nódulo. Fui para Bonfim, fiz um ultrassom e descobri que eram linfomas, só que, de forma clara, eu também não sabia o que eram linfomas. Aí pedi ao médico que me falasse de forma mais clara, mais objetiva, e ele disse que alguma coisa não estava bem no meu organismo e que os linfomas eram uma forma de o corpo demonstrar que algo não estava bem.

Saí de lá sem saber de nada, do mesmo jeito. Então, fui em outra clínica procurar um clínico geral para mostrar o ultrassom e ver o que ele iria me dizer, o que eram os linfonodos. Eu fiz isso. Quando cheguei na clínica, o médico olhou o ultrassom, em seguida o nódulo e pediu que eu ficasse internada. Eu perguntei porque a necessidade de ficar internada, não tinha me preparado para aquilo. Eu fui fazer um ultrassom e de lá resolvi passar num clínico… Não tinha nada que me facilitasse a internação, mas ele disse que não precisava de nada para me internar, só de mim. Concordei. Liguei para meu esposo para levar algumas peças íntimas. Ele levou.

Fiquei internada porque o médico disse que o nódulo poderia ser indício de muitas doenças. “Tipo o quê?”, perguntei. “Tuberculose, Trombose…”, ele falou inúmeras coisas, mas não falou nada relacionado a CA [câncer]. Fiquei internada e fiz uma série de exames e não detectou nada. Depois fui encaminhada para outro médico e ele solicitou uma biópsia. Tirou dois nódulos… aparentemente, eu achava ter só um… Fui descobrir que tinha mais quando fiz o ultrassom. Tinham oito nódulos na minha coxa só que eram internos. Eu encaminhei para análise em Petrolina e com quinze dias saiu o resultado, mas não foi conclusivo e solicitaram outro exame. Aí eu entrei em pânico.

Eu achava que a biópsia era o último exame para se descobrir alguma coisa, e a histoquímica eu não sabia o que era. Minhas colegas que fizeram Enfermagem também não sabiam… Aí eu entrei em pânico. Voltei na primeira clínica, mostrei o resultado pro médico, aí ele fez um nova guia para eu levar ao laboratório para analisar de novo, e o resultado desta histoquímica só sairia em 30 dias. Só que nesse intervalo, que eu fiquei esperando sair o resultado do exame, comecei a sentir dores, não só nas pernas, dos seios pra baixo, comecei a sentir dores no corpo todo. Não tinha posição legal para ficar… Deitada… Sentada… Dores absurdas, impossíveis de descrever. Aí resolvi ir para Salvador…

Fui na Secretaria de Saúde de Pindobaçu e pedi o número de algumas clínicas, de alguns hospitais de Salvador e por conta e risco fui ligando, ligando, perguntando se atendia pelo meu plano e, por sorte, eu liguei primeiro pro Hospital São Rafael, e lá atendia. Perguntei se havia Infectologista, porque eu deduzi que fosse alguma infecção por vírus ou bactéria, entendeu? – Já que os exames que foram feitos na [clínica] Paulo Hilarião não diagnosticaram nada. Então, eu deduzi que fosse alguma bactéria ou vírus -. Aí perguntei se tinha médico infectologista e tinha. Nesse período, meu amor estava lá porque ele estava fazendo um treinamento do Banco do Nordeste. Tinha passado na seleção e estava lá. Eu havia marcado a consulta para uma segunda à tarde, mas as dores foram aumentando, aumentando de uma forma absurda e no domingo eu já fui pra Salvador e me internei, no dia 23 de setembro [2012]. A equipe de Oncologia me atendeu…
Escrítica – Como você recebeu resultado dos exames? Como foi a tua sensação?
Normeide – A minha irmã [Regina] tinha saído para o almoço, mas eu estava numa enfermaria, comigo, havia mais quatro pacientes. Aí chegou a médica dizendo que tinha o diagnóstico; perguntou se eu estava só e eu respondi que sim. Ela disse: “Veja bem, a gente já tem um diagnóstico e eu vou lhe falar porque antes só era possível dizer para os parentes: marido, pais… Hoje o paciente faz questão de saber e, inclusive, pode até processar o médico por não falar a ele”. E eu: “Não, tudo bem. Pode falar, sinta-se à vontade”. Aí ela: “Você tem leucemia. É um quadro raro, um tipo raro de leucemia. Existem três e você tem um quarto tipo da doença. A gente ainda não sabe com que protocolo curá-la. A gente não tem literatura para ser guiado por ela. Assim: ‘em tal cidade, houve um paciente com esse tipo de leucemia e a gente vai aplicar o mesmo tipo de tratamento para você’. A gente não tem isso. Vai ser usado um dos protocolos que já existe para matar os três tipos de leucemia que existe; a gente vai adequar para você e esperar que seja eficaz”. Aí eu fiquei feliz porque eu estava sofrendo com dores e ainda não tinha diagnóstico, então, quando eu descobri fiquei feliz por já saber o que era e por saber que ia ser tratada de forma específica para “x” coisa, para “x” doença. Eu fiquei feliz.

Escrítica – Depois que você soube o que estava acontecendo, naquele momento do diagnóstico, você ficou aliviada por ter uma definição. Eu acredito que sua felicidade tenha sido por tirar sua dúvida…
Normeide – Exatamente por definir que doença era… é.

Escrítica – O que foi que você pensou depois que a médica saiu e você ficou sozinha com seus pensamentos e com essa definição?
Normeide – Minha irmã chegou do almoço e eu falei: “Nega, a médica acabou de sair e já se sabe o que é que eu tenho”. Ela: “O que é?”. “Câncer”, eu disse. Ela começou a chorar. Eu: “Não chora não. O bom é que a gente já sabe o que é e agora ela vai tratar…”. “É câncer de quê?”, ela perguntou. “Leucemia”. Aí, vendo ela chorar, acabei chorando.

Mas assim, em momento algum eu fiquei em pânico ou entrei em crise, não. Fiquei tranquila. Eu só fui ter aquele choque de realidade quando me transferiram da enfermaria para o apartamento, que eu fiquei isolada. Eu fiquei isolada; começou a quimio; vieram as reações. Tudo muito estranho, nunca tinha passado por aquelas sensações. As pessoas entrando no quarto com máscara, com capa, e eu me senti isolada como se fosse assim: ‘você tá com uma doença braba, uma doença contagiosa e as pessoas têm que se prevenir sem poder ter contado com você…’.

Escrítica – Você ficou com esta sensação…
Normeide – Eu fiquei com a sensação de que estava com uma doença contagiosa, embora eu soubesse que não é. Mas, por conta da baixa imunidade, já que eu tinha começado a fazer a quimio, as pessoas, as enfermeiras, os médicos só entravam com capa e com máscara e eu ficava com essa sensação. Eu só fui entrar em pânico nesse momento, que eu me vi isolada.

No quarto não tinha janela, só a porta de entrada que era a mesma porta de saída, e eu não podia sair nem no corredor, então, quando isso ocorreu aí eu fiquei… sabe? Aquele choque de realidade. Meu Deus! De repente tudo muda, você está com sua vida andando: estudando, trabalhando, com mil e um projetos e de repente você se vê isolada, totalmente isolada. Só tinha minha irmã e eu.


Escrítica – Em algum momento da tua vida você havia se imaginado nesse tipo de situação? Sempre ouvimos falar de casos de câncer, de outras doenças e acontecimentos e a gente se sensibiliza e acaba se perguntando: E se fosse eu? Antes de acontecer com você, você já havia se posto nessa posição? O que você pensava e diante desse pensamento houve alguma mudança que te ajudou, de alguma forma, a encarar o que você está vivendo hoje?
Normeide – Não. Eu nunca tinha pensado. Até mesmo porque eu não acho comum pensar: aconteceu com dona Joana, vai acontecer com dona Maria. Eu não acho interessante a gente sofrer por antecipação. Eu nunca tinha pensado, embora a gente saiba que não é a primeira e nem vai ser última, eu nunca tinha imaginado passar por algo parecido, mas o fato de estar passando não me frustra não. Tem coisas que não têm explicação. Só resta aceitar e eu acho que isso é uma delas, entendeu? O fato de eu estar doente não me faz me ver diferente.

Escrítica – Você sentiu medo?
Normeide – Não.

Escrítica – Você está lidando bem com os teus sentimentos?
Normeide – Estou. Eu acho que entrar em desespero não me faria bem. Nem para mim, nem para o tratamento em si, porque o psicológico influencia muito. Se você não acreditar que vai var dar certo, de certa forma, eu acho que acaba não dando certo, então eu procuro trabalhar meu psicológico dessa forma e acredito em dias melhores e acho que isso está surtindo efeito. Tanto que as pessoas olham para mim e dizem: “Normeide, se seu cabelo não tivesse caído ninguém diria que você está doente. Porque você está com o astral legal, você não mudou nada. Continua rindo”. Eu acho que se eu estivesse deprimida, chorando, esperando que as pessoas fizessem por mim o que eu mesma posso fazer e venho fazendo… Porque eu cuido de minhas coisas, eu lavo roupa, eu mesma faço o meu almoço. Eu procuro ter uma vida normal. Eu vou pra feira. Só me previno: coloco máscara e coisa e tal, mas eu procuro ter uma vida normal.

Eu acho que isso é importante, tanto pra mim quanto para o tratamento, porque se eu ficasse deprimida, cabisbaixo, talvez as pessoas fossem se aproximar por pena e não por gostar de mim e eu sei que as pessoas estão perto de mim não por pena. Eu tenho certeza que é por ter um sentimento. É porque quer ver meu bem. A minha vitória não vai ser só minha, vai ser tanto da minha família quanto dos meus amigos e eu acho que isso é importante.


Escrítica – E a vida ganhou novas cores? Você tem aprendido e visto as coisas sob uma perspectiva diferente com a doença?
Normeide – Com certeza. Passar por um tratamento desses, totalmente sem noção do que pode acontecer ou não… Foram nove ciclos de quimioterapia, então, eu sei que vou ter enjoo, vômito, queda de pressão, diarreia, febre. Isso para mim agora é normal, mas tem outras intercorrências. Eu já fui parar na semi-intensiva, já tive que fazer uma broncoscopia, já tive convulsões… Isso é algo que não tem como saber se vai acontecer ou não, então, se você passa por tudo isso e não tirar proveito (risos) nada mais vai te modificar. Acho que outras coisas não mudariam o ser humano, passando por um processo desses, entendeu?

Eu vou pra lá e não sei o que pode acontecer, o que me espera. Eu posso sair acreditando em voltar e simplesmente não voltar, não é? Porque tudo é muito novo. Quando você pensa que viu tudo, tem sempre uma novidade. Eu mesma disse para mim: dor nenhuma me surpreende mais. No início que foram as dores que me levaram até Salvador, eu achei que dor nenhuma mais me surpreendia e, no entanto, nesse último ciclo eu sofri demais com dores de cabeça, cefaleia muito forte, com enjoo, vômito. Tudo isso foi terrível.

Escrítica – No hospital você tem contato com outras pessoas que passam pelo mesmo problema que você, que passam pela mesma rotina… pelos mesmos procedimentos. Você conversa com elas, mantém essa relação?
Normeide – Todas as pessoas que estão no lugar que eu fico, sofrem com algum tipo de câncer, só que os pacientes não têm contato um com o outro por causa da proliferação de bactéria – a gente fica com baixa imunidade e aí não é permitido ter contato-, só que, quando desce para o jardim, a gente acaba encontrando algumas pessoas que passam por diversos tipos de tratamento, não só o oncológico. Pessoas com histórias incríveis.

Eu conheci uma menininha de três anos de idade, estava com a mãe, a mãe era acompanhante dela, e eles ficam revezando: pai, mãe, irmã. São de Petrolina. A filhinha dela nasceu com um problema na coluna. Ela não fica ereta. Ela fica na posição de uma cadeirinha, sentadinha constantemente e já tinham feito dezessete cirurgias. A mãe muito confiante, e a criança em si, você não diria olhando assim… A primeira impressão que fica é de que não é doente; o sorriso lindo, os olhinhos, aquele brilho… Incrível.

Só conversando é que a gente tem noção de que há pessoas passando por situações piores que a sua. E isso lhe conforta. Não é que você vai ficar feliz com a miséria do outro, mas, é que às vezes, a gente se vê distante da família, no meu caso, passo mais de um mês e quinze dias. Geralmente eu me sinto só. Minha irmã fica comigo, mas acabamos ficando sem assunto. Mais de um mês dentro de um quarto, só ela e eu, olhando uma para a cara da outra, acaba faltando assunto para conversar (risos), aí você acaba de confortando quando encontra outras pessoas que contam as suas histórias. Você acaba encontrando pessoas em situações piores; e eu cheguei até aqui e não é interessante que eu desanime agora. Eu vou prosseguir, Deus vai me dar forças.

Escrítica – Quais são os teus sonhos, teus planos?
Normeide – Sonhos? Eu tenho bastante! Meus planos no momento é terminar os estudos, após o tratamento; ajudar o meu esposo, construir o que a gente já tinha planejado anos atrás, antes de eu ficar doente; viajar como a gente já tinha planejado. E sonho no momento é fazer o transplante, agradecer a Deus e aos amigos que estão me dando apoio, um apoio inexplicável. Sabe aquele amor incondicional de mãe? É o que venho recebendo dos meus amigos. Deus me deu uma família de amigos que eu não tenho palavras pra descrever ou agradecer. Mas no momento eu sonho com isso, me ver livre desse processo, do tratamento, terminar o transplante, esperar que tudo ocorra bem e agradecer a todas as pessoas que vêm me apoiando.

Escrítica – Você é uma pessoa religiosa, espiritualizada? Como é a fé em você?
Normeide – Eu não tenho religião. Eu creio em Deus e isso pra mim é o suficiente. Eu acho interessante crer em alguma coisa, acho que é necessário crer em alguma coisa e eu prefiro crer em Deus. Eu creio que tem uma força maior que rege o universo e nos sustenta, isso pra mim é o suficiente. Eu creio em Deus, mas eu não tenho religião, eu não tenho o hábito de ir pra igreja. Eu não acho que seja necessário ir para a igreja para ter fé ou para crer em algo, então, eu creio em Deus e isso me mantém de pé.

Até este dia, Normeide estava em casa, aguardando os progressos do tratamento, sonhando com o transplante de medula, que está prestes a acontecer, graças à sua irmã Carminha, de 28 anos, portadora da Síndrome de Down, compatível. A doença de Normeide parece querer provar algo além da força e da coragem desta mulher, parece querer fazer demonstrar alguma espécie de valor que deixamos de atribuir a quem também o merece. Carminha vive com a mãe, dona Ana Maria e a outra irmã, Regina, que vem ajudando a aplacar a solidão de Normeide no hospital.
Dona Ana Maria é uma mãe de muitos filhos, que sofreu o abandono do marido e se ancorou nas responsabilidades da maternidade para seguir em frente, sempre tendo Deus como sua testemunha. Foi com um pouco de lágrimas nos olhos, com a boca um pouco trêmula, que ela tirou da dureza da história de Normeide um tanto de graça: “Ela nunca se conformou com uma coisinha só, não sabe? Sempre ela gostou de coisas grandes; sempre ela olhou muito longe. Quando ela se ajuntoucom esse menino, ficou falando assim: ‘Eu quero ter minha casa de rico’. Tudo que ela pegava dizia: ‘É de rico’. Eu digo: ‘Ô meu Pai do Céu, agora até a doença que veio pra minha fia foi de rico…”.
Quanto à Carminha, vai brincando, guardada em sua inocência, se satisfazendo com a missão de salvar a vida da irmã, a mais importante que o destino lhe deu e cuja grandiosidade ela ignora como só as crianças podem. Mal sabe Carminha que a candura de sua alma pode renovar o sangue de Normeide, que anseia mais do que nunca viver a simplicidade da vida ao lado de seu marido, o firme Denival Fernandes, de 28 anos, um dos pilares da continuidade desta história, aquele a quem Normeide reconhece apenas como: “meu amor” ou “o amor”.
Escrítica – Como você sente o fato de sua cura poder vir de sua irmã que é portadora da Síndrome de Down? Como você recebeu essa notícia e como as pessoas ao teu redor estão vendo essa possibilidade?
Normeide – Eu me sinto feliz por ser ela, pelo fato de a sociedade ainda ter preconceito, embora bem menos que antes, mas ainda tem preconceito. É uma forma das pessoas verem que ela não é inútil como muitos acham, e acabam abortando os filhos quando sabem que têm síndrome ou alguma deficiência física. É uma forma de a sociedade ver que ela é útil, embora ela seja útil em diversas outras coisas, mas a grande maioria prefere ver de forma diferente… Feliz? No momento em que soube eu não fiquei. Eu não vou negar.
Escrítica – Porque?
Normeide – Porque são muitos irmãos e eu preferia que fosse algum dos irmãos homens, pela resistência física, tanto que ela ficou por último. Meus irmãos foram para Salvador, todos juntos e ela foi a única que não foi. Minha mãe perguntou se Carminha não iria e eu disse que não porque o médico falou que possivelmente eu teria uns quatros irmãos compatíveis, quatro doadores, por que, geralmente, a cada cinco irmãos é possível que tenha dois compatíveis e eu pensei: tenho nove é bem possível que eu tenha uns quatro doadores.
Cada resultado era uma frustração. Quando saía o resultado… “È compatível?”. “Não.” Aí você recebe outro resultado e acaba não sendo. O médico perguntou: “Mas você ainda tem uma irmã, não é?”. “Mas, ela tem síndrome”, respondi. “O que não impede dela fazer um exame e não impede também dela ser compatível”. Eu concordei. Liguei para meu irmão de São Paulo para perguntar se ele achava interessante que ela fizesse. Porque embora eu estivesse doente e a tivesse em vista para fazer o exame, se meus irmãos não achassem interessante fazer com ela, por questões psicológicas ou pela possibilidade dela ficar com alguma sequela, eu não iria insistir para que ela fizesse, entendeu? Até porque pra mim a integridade física dela está em primeiro lugar, e continua estando. Agora eu sei que ela não corre nenhum risco de ficar com sequelas e nem de morte.
Minha mãe, desde o início, queria que ela fizesse. Ela disse: “Deus me deu ela e deve ter um propósito, talvez o propósito seja esse”. E acabou sendo. Quando saiu o resultado. Nossa! Eu chorei bastante.
Escrítica – Um choro de quê?
Normeide – Um choro de tristeza, porque eu não queria que fosse ela. Mas acabou sendo e ela está muito feliz, muito animada, totalmente empolgada. Ela fala pra todo mundo que vai ser minha “induadora” (risos). Ela fala pra todo mundo que vai salvar a minha vida. A gente procura conversar com ela, deixar inteirada sobre o assunto. A gente não fala tudo pra não causar medo, entendeu? Porque o medo é algo que faz parte. Todo o mundo tem. Quando um não tem medo de uma coisa, acaba tendo de outra, e na situação dela é bem comum que ela tenha medo ou chore quando chegar na hora porque ela não entende tudo de forma específica como nós entendemos, mas procuramos sempre conversar com ela.
Escrítica – Você tem medo de morrer?
Normeide – Não. A morte pra mim é “um pensamento gentil, de paz eterna” (Junqueira Freire). Eu não tenho medo de morrer não. Eu costumo ver a vida como uma moeda, tem dois lados e geralmente as pessoas se frustram por querer ver só um lado. Eu converso bastante com minha mãe e eu digo pra ela sempre: “Mãe, se alguma coisa não ocorrer como a senhora e a grande maioria espera, e eu também espero, não se frustre não, nem blasfeme, porque eu já fui muito feliz.
O fato de eu estar doente não me faz lamentar nada. Eu estou procurando tirar proveito da situação, me tornar uma pessoa melhor, mais agradável, mais companheira pro meu esposo, pra minha família, pros meus amigos. Eu acho que é interessante você ver a vida de um novo ângulo e eu estou procurando fazer isso.
Morrer é consequência, estar vivo é um milagre. Se eu estou dando o melhor de mim, Deus é testemunha, as pessoas são testemunhas disso. Eu estou dando o melhor de mim e as coisas nem sempre acontecem como a gente gostaria que acontecesse e eu preparo a minha mãe sempre. Se isso não ocorrer como a gente espera e a grande maioria espera, a senhora não tem o que lamentar não, porque eu, estando doente, não tenho.
Escrítica – Você e seu marido são um casal jovem. Como tem sido a rotina dentro do casamento diante da doença? Como tem sido o seu marido nesse momento?
Normeide – Eu costumo dizer que eu não tenho sorte, eu costumo dizer que sou uma pessoa abençoada. Primeiro por ter a mãe que tenho, a família que tenho, e também, pelo marido que tenho. Falar dele não é difícil; para muitos ele é atrevido e eu até concordo, mas, no geral, ele é pra mim uma pessoa que traz no olho uma esperança de dias melhores. Ele nunca chorou na minha frente, nunca lamentou o fato de estar doente. Ele me dá total força.
No começo, nos primeiros meses em que eu estava em Salvador, a gente se falou por telefone e depois pessoalmente. Eu falei pra ele que ele estava livre, que ele tinha total liberdade, que não se sentisse na obrigação, por eu estar doente, de ficar carregando esse peso; ele tinha total liberdade para procurar ser feliz, talvez só, talvez com outra pessoa, mas a gente se uniu por um sentimento que até hoje a gente alimenta: o amor. Embora eu esteja doente, ele me dá provas todos os dias que me ama e que vale a pena estar comigo, vale a pena lutar, que estou doente, mas é apenas uma fase que vai passar.
Escrítica – Ele tem mostrado aspectos da personalidade dele que você não conhecia ou ele sempre foi essa pessoa que ele é, com essa carga de esperança e altivez diante da vida para encarar os problemas? Como tem sido o espírito dele, através do seu olhar, diante desta vivência de vocês?
Normeide – Não mudou muita coisa não, embora eu o veja bem mais perto de Deus. Eu o vejo orando, ele me chama pra ir para a igreja. A atitude dele em me chamar… Antes era eu que o convidava. Hoje eu o vejo mais próximo de Deus, o que eu acho importante. As pessoas têm que se alimentar espiritualmente diante de tantas crises, tantas dificuldades, diante de tantas coisas que o mundo oferece e não é bom. As pessoas terem Deus é essencial e o que mudou pra mim foi isso, mas no geral, ele é pra mim a mesma coisa.
Escrítica – No teu cotidiano quais são as coisas que você gosta de fazer e vai continuar fazendo depois que essa rotina médica acabar?
Normeide – As coisas mais simples são as mais extraordinárias. Estar em um hospital, parece incrível, mas eu sinto uma vontade imensa de comer cuscuz (risos). Essa é a prova de que as coisas mais simples são as mais extraordinárias! Eu sinto vontade de comer cuscuz! E minha irmã diz: “Ô sonho pobre!” (risos). Lá, eu sofro muito com a ausência das pessoas porque eu nunca me vi só. Na minha casa são muitos irmãos e a gente, todos os domingos, estava junto fazendo farofa, assando carne no quintal de mainha. Foi sempre assim, uma família grande, embora cada um tivesse sua casa, tinha o dia de se reunir, de estarem todos juntos, batendo resenha, dando risada das palhaçadas um do outro.
Depois, a faculdade. Minha turma tinha 40 alunos, era uma turma grande. Depois eu comecei a dar aulas no Estadual, tinha cinco turmas. No mínimo, cada sala tinha 28 alunos, então sempre me vi envolvida com muita gente. Eu tenho uma lanchonete ao lado do Banco do Brasil e diariamente eu estava em contato constante com as pessoas daqui e das que vinham da zona rural, então, nunca me vi isolada, sozinha. Quando me vi lá, só, foi isso que impactou e me fez sofrer bastante. Primeiro pelo tempo que fiquei, mais de um mês, no primeiro ciclo de quimioterapia, então a ausência das pessoas fez com que eu ficasse um pouco debilitada, fragilizada, chorando bastante. E estando em casa o quadro muda. Tenho visitas constantemente. Saio com meus amigos pra comer pizza, pra passear, vou pra rio, pra cachoeira, só não faço tomar banho, mas estou no meio da muvuca (risos). E isso pra mim é tudo!
Escrítica – Mas, a solidão por mais difícil que seja pra você, ela não te traz alguma coisa boa, que você só pode encontrar nela? Você não extraiu, de alguma forma, alguma coisa boa da solidão?
Normeide – (pausa) De forma específica, para mim é ruim, mas a gente vai trabalhando isso. Você sabe que não é possível as pessoas estarem por perto por causa da distância, então você vê quem está ao seu lado, mesmo distante, porque você recebe uma ligação, uma mensagem. As pessoas ligam pra mim e dizem: “Deus está me inquietando e eu vou orar por você se você permitir”. Então, embora eu esteja distante, tem pessoas lembrando-se de mim.
Você acaba vendo a vida de outra forma. Pessoas que você deu o seu máximo e hoje esperaria ter o mínimo, acaba não tendo; e outras pessoas que às vezes você não levou a sério, você passou e simplesmente deu um bom dia algumas vezes são pessoas que se aproximam e fazem total diferença no momento. Então você aprende a dar valor às pessoas, à família, ao esposo… Às vezes você briga e destrói a relação por coisas simples, coisas que poderiam ser resolvidas com uma conversa. Muitas vezes, a gente bota a casa de cabeça pra baixo por conta de uma cólica e você nunca para pra imaginar que tem pessoas botando a casa de cabeça pra baixo por conta de um dor crônica, por conta de algo que ele nem sabe, então tudo isso você aprende a ver de forma diferente.
Escrítica – Qual é a palavra mais recorrente em sua vida, desde que você descobriu a doença, ou a palavra que sempre te acompanhou, que é mais simbólica?
Normeide – Esperança. Acho que a esperança, assim como a fé, nos alimenta. Acho que é interessante você acordar e ter esperança de dias melhores. Hoje está ruim, estou tendo uma reação, a dor de cabeça está forte, mas amanhã talvez eu não esteja passando por isso, então, tem que alimentar todos os dias a esperança de dias melhores.
É assim Normeide, como Sêneca nos ensina em Aprendendo a Viver: “pensa que nada é extraordinário a não ser a alma e que, para uma alma grande, nada é grande”, nem a dor, nem o sofrimento, nem as lutas da grande arena  vida. Essa você já venceu.
*Por Emiliana Carvalho
Do Escrítica.com